sexta-feira, 6 de junho de 2008

Propus a Sara que falássemos dos acontecimentos desta madrugada. A sua expressão angustiada indicava que algo de terrível acontecera naquele lugar, naquele planeta. Sara não era pessoa para reticências. Anuiu.

A Sara reunia em si as duas grandes competências da medicina moderna: o diagnóstico e a cirurgia topossomáticos.

A grande última descoberta da medicina era a da dupla representação celular que consistia, só para simplificar, no seguinte:

Sabia-se, desde o século XX, que cada célula tinha uma representação interna do seu passado, do seu presente e do seu futuro inscrita no código genético do indivíduo.

O código genético, propriamente dito, é, em termos práticos, comum a todas as células de um organismo vivo. Mas é usado diferentemente consoante a especialização de cada célula: uma miofibrilha, um neurónio, uma célula óssea ou um gâmeta. Nos cromossomas de um neurónio só actuam os genes que permitem que um neurónio seja um neurónio, isto é que possua extensas ramificações, cuja membrana dificulte ou facilite a difusão de iões de sódio, cálcio e potássio, com inversão de potencial nos meios interno e externo, e que dispare para as sinapses todo o caudal de mediadores químicos que acciona a álgebra booleana do processamento da informação postsináptica. Todos os outros genes estão inibidos impedindo que essa célula abdique da sua especialização estrutural e funcional e venha a desempenhar funções de outras. Com o passar do tempo e devido à reprodução, mitótica ou meiótica, as novas células adquirem e acumulam novas propriedades por mutação casual dos seus genes. A finalidade específica de cada gene é produzir um tipo específico de proteína: um gene, uma proteína! Quando o sistema decisional da célula determina a necessidade de uma proteína específica, pede ao sector de planeamento um blueprint com todo o detalhe necessário para a produção da proteína. Este, que se situa nas massas de cromatina do núcleo celular, reproduz a informação codificada num suporte adequado, o ARN mensageiro, que é enviado para as unidades de produção, as mitocôndrias, onde vai abrir uma ordem de produção. A fábrica pede aos armazéns os tipos e as quantidades de aminoácidos requeridos como matéria prima e após a recepção encaminha-os para as linhas de montagem de acordo com o plano pré-estabelecido. Aquela proteína será específica porque irá ter exactamente um tipo, um número e uma sequência de amino-ácidos e uma estrutura peptídica tridimensional rigorosamente pré estabelecidos por codificação no gene.

A missão da medicina é, como sempre foi, preservar o estado de saúde da pessoa prevenindo a doença. Contudo evoluiu muito no sentido de convergir de uma abordagem macroscópica para uma abordagem celular, sobretudo com os avanços das investigações nos domínios do oncológico e dos sistemas imunitários. Saber o que se passa em cada célula e intervir ao nível de cada célula individualmente. Também contribuiu muito a falência das farmacopeias industriais.

Com o avanço do paradigma mimético e a compreensão de como se geram, reproduzem e actuam os memes em termos da mentalidade de um organismo (seja ela o sistema cognitivo de um indivíduo ou a cultura num grupo social) começou a tornar-se cada vez mais óbvio as suas implicações na medicina. Algures no cérebro se geram e codificam os memes em que são registadas e comparadas as estórias de cada célula e gerados padrões que lutam por se impor às grandes massas de células, enfraquecendo-as, no sentido de espalhar estados de desequilíbrio mórbidos, ou fortalecendo-as, repondo novos equilíbrios. As investigações feitas nesse sentido vieram apoiar, quer as teorias pioneiras do efeito placebo ou do locus of control, quer a intuição, mantida desde os primórdios da humanidade, de que a atitude mental positiva favorece o restabelecimento da saúde e, inversamente, que a atitude negativa é detrimental para a saúde.

O diagnóstico médico moderno perscruta os registos miméticos no cérebro do paciente e repara as células através da alterações induzidas desses registos (cirurgia tópica). Quem no século XX, ou nos princípios do presente século, o ouvisse expor, tomaria isto por bruxaria, xamanismo ou charlatanice. E não era de admirar, tomando em consideração a mentalidade dominante daquele tempo.

As competências de Sara situavam-se prioritariamente na técnica do contágio (transmissão de sentimentos) e de imagens indutoras.